Após concluir meu curso de Sommelier, mantive contato com alguns amigos e formamos um grupo de degustação. Nos encontrávamos duas vezes por mês para explorar novos vinhos, compartilhar experiências e celebrar nossa amizade. Nosso grupo era composto por diversos sommeliers de terceiro nível, inclusive a diretora do meu curso que frequentemente se juntava a nós.
Começávamos nossos encontros com degustações técnicas e provas de harmonização para aprimorar nossos conhecimentos. No decorrer, nosso ambiente se tornava mais descontraído, permitindo a todos desfrutar ao máximo o prazer de estarmos reunidos.
Geralmente, eu era o responsável por levar os vinhos, pois, sendo revendedor, conseguia preços muito mais acessíveis do que os praticados no comércio. Em uma dessas ocasiões, decidimos organizar uma degustação que incluíam os três vinhos da Tenuta San Guido, o renomado Sassicaia, seu irmão do meio Guidalberto e o caçula Le Difese. Além disso, incluímos uma grappa di Sassicaia, produzida pela destilaria Poli Grappa de Bassano del Grappa em Vicenza.
O Bolgheri Sassicaia DOC, é um vinho tinto italiano de renome mundial, produzido na região da Toscana, mais especificamente na zona de Bolgheri, na costa oeste da Itália. Este vinho tinto é amplamente conhecido por sua elegância, complexidade e qualidade excepcional. Nas safras mais jovens, custa em média 280 euros na Itália, e no Brasil, devido às taxas de importação e outros custos, seu preço pode ultrapassar facilmente os 3 a 4 mil reais.
Na tarde que antecedia a degustação, passei no supermercado para comprar queijos, salames e outros frios, itens ideais para harmonizar com os vinhos. Como de praxe, cada um dos participantes contribuía com algum alimento para enriquecer nossa experiência enogastronômica.
Enquanto percorria a seção de vinhos do supermercado, tive uma ideia divertida. Comprei dois famosos vinhos em embalagem longa vida de 750ml, um tinto e um branco. Ao chegar em casa, transferi cada um para garrafas imponentes, de vidro espesso, aquelas geralmente associadas a vinhos caros. Removi os rótulos e cobri as garrafas para que a degustação fosse às cegas.
Quando a hora finalmente chegou, nos reunimos na sala de degustação da renomada Vinícola Fasoli Gino, que gentilmente nos emprestava o espaço. A vinícola esta localizada em Colognola ai Coli, na região de Soave na Provincia de Verona. Essa vinícola é conhecida por sua produção 100% orgânica e biodinâmica e por seus excelentes vinhos.
Todos estavam ansiosos, pois a maioria nunca havia provado o lendário Sassicaia, um dos vinhos italianos mais premiados e renomados do mundo! Um verdadeiro Super Tuscan. Cuidadosamente, posicionei as garrafas na mesa de degustação, mantendo as duas garrafas com os vinhos do supermercado cobertas, e o segredo sobre sua verdadeira identidade.
Antes de começarmos, propus aos meus amigos que provassem os dois vinhos, fizessem uma avaliação técnica e, em seguida, me dessem suas opiniões. A expectativa era palpável, todos olhavam com curiosidade para aquelas garrafas da famosa Tenuta San Guido, imaginando que surpresa eu havia preparado com aquelas garrafas cobertas.
Iniciamos com o vinho branco, seguindo os procedimentos de exame visual, olfativo e gustativo, finalizando com a avaliação. As opiniões foram surpreendentemente similares. Ninguém conseguiu identificar a origem, as uvas ou outros atributos técnicos do vinho. Todos concordaram que não era o melhor vinho que já haviam provado, mas era discreto e harmonizaria bem com uma refeição, algo que definitivamente comprariam.
Partimos então para o vinho tinto, novamente às cegas, e o resultado foi previsível. Ninguém conseguiu decifrar sua origem ou características.
Nesse ponto, a curiosidade se transformou em impaciência. Todos estavam ansiosos para descobrir a identidade dos vinhos. Foi quando decidi contar uma história.
Relatei uma visita que fiz a uma feira de vinhos na região do Piemonte, famosa por seus vinhos Nebbiolo, como Barolo e Barbaresco. Conheci um pequeno produtor de Barolo e tivemos uma conversa agradável sobre vinhos feitos com uvas Nebbiolo. Provei seus vinhos, que eram excepcionais.
Foi então que o produtor de Barolo me desafiou, perguntando se eu realmente entendia de vinhos. Respondi humildemente que ainda tinha muito a aprender, mas afirmei ser um sommelier formado pela Federação Italiana. Para testar meus conhecimentos, ele me serviu uma taça de vinho sem que eu pudesse ver o rótulo e saber sua origem. Peguei a taça, observei sua cor rubi pouco carregada, examinei sua fluidez, a qual me indicou um vinho provavelmente pouco alcoólico, e embora não tenha identificado as uvas ou a região de produção, percebi ao paladar que era um vinho equilibrado.
Um pouco constrangido por ser um Sommelier e não ter identificado nem ao menos por longe de que vinho se tratava, perguntei sobre sua identidade. O produtor de Barolo revelou que era um vinho Tavernello, apresentando a caixinha de longa vida. Meus amigos adoraram a experiência e me agradeceram infinitamente do mesmo modo que eu havia agradecido aquele produtor de Barolo.
O Tavernello é amplamente conhecido na Itália, vendido pelo irrisório valor entre 1 e 1,50 EUR a unidade longa vida de 750ml. Não possui classificação específica e é considerado um vinho de mesa. Sua produção não está restrita a castas de uvas ou regiões específicas, como no caso dos vinhos DOP ou IGP, o que permite grande flexibilidade na sua composição. Um vinho de baixo custo que ocupa a posição de quinto vinho mais vendido no mundo com 11,4 milhões de embalagens, o equivalente a 0,4% do mercado mundial de vinhos.
A lição aprendida? Um vinho pode apresentar algumas ou todas as características de um bom produto, mas nem sempre é o caso. Por um valor tão baixo, é quase impossível esperar um vinho de alta qualidade. Nessas situações, a química pode desempenhar um papel fundamental na vinificação, mas não de maneira ilícita. Produtores desses vinhos de baixo custo, frequentemente usam todos os recursos permitidos por lei para atingir o equilíbrio e o sabor desejados. Em muitos casos, o marketing pode superar a qualidade percebida. "Os italianos costumam dizer, nesses casos, para ironizarm que vinho se faz também com uva!
Em última análise, a experiência memorável da degustação às cegas nos ensina que o mundo do vinho é repleto de surpresas e reviravoltas. Por trás de rótulos e preços, está a verdadeira essência do vinho, e muitas vezes essa essência não pode ser julgada apenas pela aparência ou pelo preço. O vinho Tavernello, com seu modesto custo, nos lembra que a qualidade do vinho está intrinsecamente ligada à paixão e à habilidade dos produtores, independentemente de sua qualidade ou de seu orçamento de produção. Portanto, da próxima vez que você desfrutar de uma taça de vinho, mantenha sua mente e paladar abertos, pois a próxima grande descoberta pode estar a apenas um gole de distância. Afinal, o verdadeiro prazer do vinho está na jornada de descoberta e na companhia de bons amigos, que valorizam cada gole como uma experiência única e enriquecedora.
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